A alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial operada pelo Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de Dezembro, tem gerado grande discussão e muita dela equivocada. Começa logo por se falar erradamente em “lei dos solos”, passa por se ignorar as alterações que já haviam sido feitas em Janeiro do ano passado, através do Decreto- -Lei n.º 10/2024 (o simplex dos licenciamentos) ‒ esse, sim, criador de um procedimento simplificado de reclassificação dos solos rústicos em urbanos ‒ e termina em confusões económicas várias.
Sem querer entrar em pormenores jurídicos (até porque não sou de Direito) e procurando ser sucinta, as alterações trazidas pelo Decreto-Lei n.º 117/2024 são, basicamente, a eliminação do requisito de que os solos em causa sejam públicos, a substituição de “habitação a custos controlados” por “habitação de valor moderado” e a possibilidade de 30% da área de construção ficar de fora deste conceito. De resto, as exigências de contiguidade com solos urbanos, a necessidade de compatibilização com estratégia local de habitação, carta municipal de habitação ou bolsa de habitação e a exclusão de terrenos em áreas sensíveis, na Reserva Ecológica Nacional ou na Reserva Agrícola Nacional mantêm-se, tal como os trâmites do dito procedimento.
Diz o preâmbulo do diploma que «a maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis». Teoricamente, o raciocínio está certo. Maior oferta de solos aptos para construção faz o preço dos terrenos descer, diminuindo o custo de um dos factores de produção da habitação. Claro que a conversão de rústico em urbano valoriza estes terrenos, mas isso acontece precisamente porque vão poder ter casas em cima deles ‒ e, por favor, pare-se de falar em especulação a este respeito, porque, para haver especulação, o aumento de preço não pode ter um fundamento económico, o que obviamente não é o caso.
Portanto, não, o preço das casas não sobe por estes terrenos ficarem mais caros, porque globalmente o preço do solo desce (é a lógica dos vasos comunicantes). E não, a menção à mediana nacional do preço do m2 não funciona como uma referência padrão que fará as casas ficarem mais caras onde agora estão abaixo daquele valor. É um tecto, que só limita para cima, da mesma forma que a remuneração mensal mínima não puxa os salários para baixo (ou os patrões pagariam melhor se ele não existisse?!).
Diz também o preâmbulo que «no contexto atual, o aumento do número de solos destinados à construção de habitação, incluindo habitação pública e acessível é fundamental para assegurar o cumprimento dos objetivos do Programa Construir Portugal» e que «esta medida é, portanto, essencial para garantir o sucesso do programa e para proporcionar soluções habitacionais adequadas e acessíveis a todos os cidadãos.» Ora, aqui entramos no lado do impacto da medida. Se uma avaliação baseada na teoria nos diz que ela faz sentido, antever a sua real eficácia exige dados de que não disponho.
Desde logo, qual a área que se acrescenta à que já gozava desta possibilidade de reclassificação mais simples e em que concelhos se situa. Podem ser meia dúzia de terrenos sem qualquer efeito palpável. Mas ainda que esta alteração se traduza numa significativa descida do preço da terra, quanto é que esta pesa nos custos de construção? Tem sido este o entrave à nova construção? Os últimos vinte anos conheceram quebras significativas do emprego e do número de empresas no sector da construção, pelo que pode haver insuficiente capacidade de erguer casas mesmo que exista muito espaço barato onde assentá-las. Isto para nem referir a questão dos licenciamentos ou o rol de exigências legais de qualidade.
Podemos, então, afirmar que se trata de uma medida potencialmente ineficaz, mas inofensiva? Bom, há custos. Não são os argumentos detractores focados no preço que já desmontei, mas estas alterações vão no sentido de originar cidades mais extensas, potencialmente com menor qualidade do habitat (que também faz parte do direito à habitação) e com os custos ambientais decorrentes de maiores movimentos pendulares e de maior impermeabilização dos solos (um ponto que será mais bem desenvolvido por urbanistas, arquitectos, geógrafos e engenheiros do território). Mas a política é precisamente fazer escolhas.