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EDITORIAL

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Ricardo Guimarães
Ricardo Guimarães
Diretor da Ci

No limite, porque preciso de Governo?

Abril não é um destino. É um caminho, uma possibilidade. Nessa medida, é uma construção permanentemente inacabada. Não tem de se justificar pelos sucessos alcançados. Basta que os permita como hipóteses viáveis. Uma promessa credível. Uma primavera.

Mas a Democracia é um pouco como a chegada à vida adulta. Um labirinto moldado por livre-arbítrio e responsabilização. Domar as rédeas do destino, sem tutelas, mas também sem escudos de indulgências. Experimentar. Errar. Sofrer. Corrigir.

Na sua vinda recente a Portugal, Roberta Metsola, a presidente do Parlamento Europeu relembrou um facto perturbador: a Democracia não é o regime dominante. No presente, mais de metade da população mundial vive em regimes autocráticos. Invernos que desafiam e efetivamente ameaçam os abris. Ou abris que enfermam de populismos e se fustigam a si mesmos, desnudando a debilidade de um chão dado por seguro. Faróis eventualmente disponíveis para ceder e emanar escuridão.

O óbvio, o simples, o consensual, são agora um manto turvo, esmagados pelo ruído intencional. Eventualmente mais vale condescender. Desfalecer perante a inevitabilidade de um processo cada vez mais orgânico e que quanto mais empodera cada um, mais o domina e controla.

O apelo é crescente. O instrumento: o populismo. Abril, sem Novembro. Novembro, sem Abril.

O exercício do Poder deve focar-se na promoção do bem-estar da população. Na resposta às suas necessidades, no arbítrio das prioridades que mais relevam sobre o futuro. Um compromisso que vincula a todos os representantes dos eleitores, sejam ou não Governo. A primavera democrática implica uma porta constantemente aberta para o exercício da liberdade, expresso na prossecução constante das dinâmicas que melhor possam atender aos propósitos de poder referidos. Democracia não deve traduzir-se em alternância entre um pendor ora revolucionário ora reacionário, conforme se desafia ou se retém o poder. O incumbente não pode reclamar a legitimidade democrática, escudando-se nela para se salvaguardar a si mesmo, ao invés daqueles a quem representa. O oponente não pode restringir-se a uma conduta tática, de curto-prazo, balizada pela probabilidade de inverter as polaridades.

Se a ação democrática, em exercício e oposição, não tiver por único propósito a resposta ao mandato popular, preserva-se na aparência, mas aduba o populismo do descontentamento.

Por isso importa olhar para o Programa do Governo. No caso que nos releva, no que concerne à Habitação.

Não sendo exaustivo de todas as medidas que poderiam ser elencadas, assenta naquele que é o consenso da indústria para colmatar a maior lacuna que determina a realidade nacional: a falta de oferta. Dirige medidas para a dinamização da promoção de habitação acessível, umas mais imediatas, através da redução da tributação e taxas de urbanização, e outras de longo prazo, traduzidas na flexibilização do uso dos solos e aumento da densificação, com estímulo à construção em altura, a única tipologia compatível com os objetivos de acessibilidade e sustentabilidade.

Ora, os dados da Ci mostram que dos projetos lançados em 2023 somente 3% tinham mais de 20 fogos. A sua quase totalidade, designadamente 88%, correspondem a moradias.  Estes números evidenciam o quanto a densificação é uma agenda longe de estar ganha. Mexer no ordenamento ou mesmo na organização administrativa do território é, no quadro político nacional, um cenário que tem tanto de imprescindível quanto de impossível.

Porque não me entrego à frustração, me revolto e desresponsabilizo? Acuso. Nunca a mim, claro. Nesse vórtice, de que serve um programa se o posso derrubar? De que serve poder ter sucesso, se o mesmo não vier pela minha mão?

No limite, na aurora da inteligência artificial, de que serve procurar ter critério, se tenho ao meu alcance a resposta a todas as perguntas. Saberei perguntar? Porque tenho sequer de perguntar se as respostas me chegam antes de que as tenha podido formular. Uma atrás da outra, num ecrã. Para que preciso sujeitar-me à realidade se posso viver no virtual. Em último caso, porque preciso de Governo? Acima de tudo, se for para manter tudo na mesma?

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