A habitação parece ser o último reduto da luta de classes.
Num mundo marcado pela revolução digital, a propriedade dos meios de produção deixou de ser um território profícuo para a promoção desse conflito, não só pela crescente imaterialidade dos serviços prestados pelas empresas, como em resultado da evidente democratização na geração e acesso ao principal ativo que estrutura o capital do século XXI: o talento. Naturalmente, há ainda grandes empresas capital-intensivas, destacando-se todas as relacionadas com matérias-primas e infraestruturas. No entanto, muitas das empresas mais valiosas e vencedoras na nova ordem mundial nasceram numa garagem, local pouco compaginável com o imaginário do impiedoso poder capitalista. Este avanço civilizacional, claro está, não apaga todo um historial de desconsideração da dimensão humanista nas relações sociais e laborais, justificadoras das muitas revoluções que, precisamente, trouxeram mudanças estruturais das quais todos somos beneficiários. No entanto, talvez em parte o seu sucesso tenha esvaziado esse campo de batalha.
A educação tornou-se o grande pilar do combate às desigualdades, mesmo que ainda de forma visivelmente imperfeita, dando crescentemente lugar ao primado das competências sobre o determinismo da origem social.
Hoje em dia já não é prática recrutar com base no apelido. E na luta pelo talento, pela sua atração e retenção, as empresas sabem que têm de valorizar os seus colaboradores, cada vez mais flexíveis, dinâmicos e empoderados por novas realidades como o teletrabalho. De certa forma, está ao alcance de todos os funcionários serem empresários do seu tempo e competências, nivelando as relações. Hoje são comandados. Amanhã, comandam.
Ora, assim, pouco fica para uma agenda que vive de um saudoso conflito. Há oportunidades, claro, desde logo dentro do espaço da função pública. Mas são limitadas, não tendo uma dimensão universal, fundacional e, muito menos, patrimonial, capitalizando sinergias com espaços de conflito de índole sociológica, dos valores e dos costumes.
Ora, sendo assim, a crise na habitação apresenta-se como uma oportunidade única. Tem tudo. Tem pessoas potencialmente em conflito de interesses. Tem direitos fundamentais e, acima de tudo, tem uma raiz física, patrimonial, remetendo para um conceito de propriedade, acessível necessária e estritamente através de…. capital. Não se pode deixar passar tamanha pérola. Em especial, como convém (e se observa), quando na mesma emerge uma crise social, especialmente severa, afetando não só camadas da população mais sensíveis como os jovens e os desfavorecidos, como mesmo a classe média, âmago da burguesia, ela mesmo desprotegida.
Com tamanho potencial, mal seria que se lançassem medidas que atalhassem o problema e pacificassem o povo. Com a competência de Orwell, lança-se um programa com um nome oposto do visado. Na “novilíngua” propagandística de Orwell, o Ministério do Amor impunha o cumprimento das regras. O Ministério da Verdade fazia o revisionismo histórico. O Ministério da Paz, claro, fazia a guerra. Assim, sem mais, o “Mais Habitação” nada mais nada menos assegura que haja menos casas, implementando as políticas que historicamente se prova concorrem para esse mesmo objetivo. Para o bem da luta de classes, quanto mais se aplicam os remédios mais os sintomas se agudizam, confundindo os iludidos e alargando o espaço de conflito.
Para o mercado, este é um tema desafiante. Os operadores têm a ambição de desenvolver a atividade num clima de estabilidade e previsibilidade, assegurando a oferta ao máximo possível de destinatários e segmentos. Na impossibilidade de o fazer, retraem-se e constrangem essa oferta aos segmentos onde a atividade se mantenha viável.
Os dados desta edição mostram isso. Muitas intenções de investimento, mas menos produto a avançar. Altas taxas de absorção nos empreendimentos em mercado, preços mais lentos, mas positivos.
Se no limite nenhum mercado tiver viabilidade, ganha a luta de classes.