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EDITORIAL

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Ricardo Guimarães
Ricardo Guimarães
Diretor da Ci

CONVERTER O PRR NUM NOVO “JESSICA” PARA HABITAÇÃO ACESSÍVEL

A retórica sobre o acesso à habitação foca-se em objetivos totalmente legítimos. No entanto, quando traduzida em política pública, tem encerrado uma abordagem que ignora por completo a natureza industrial da atividade da promoção imobiliária, insistindo em medidas que contribuem de forma inconsequente ou, mesmo, negativa para os fins visados.

Sintetizando, diria que a promoção imobiliária se estrutura em função de restrições industriais manifestadas ao nível: das cadeias de fornecimento, do financiamento, do território e da procura.

Do lado das cadeias de fornecimento, destaca-se a sua dependência face a setores cada vez mais pressionados, em especial o da construção, crescentemente condicionado no acesso a mão-de-obra, a materiais e, mesmo, a empresas que respondam às encomendas. Esta é uma dimensão exógena ao mercado, decorrendo das pressões de concorrência internacional, pouco passível de ser influenciada pela política pública… Já do ponto de vista do financiamento, os desafios advêm sobretudo dos tempos de licenciamento, da carga fiscal e do risco-político. São três subtemas ao alcance da política pública. No licenciamento, claro. Na carga fiscal, óbvio (há estudos que apontam para uma incidência fiscal e parafiscal de quase 40% sobre as rendas de habitação)! No risco-político (fruto da instabilidade fiscal e legislativa), o mesmo! São dimensões nas quais a política pública deveria fazer muito mais, contribuindo de facto para a geração de uma oferta de habitação acessível. Quanto à restrição territorial, talvez a dimensão mais estrutural e específica do imobiliário, depende da política de urbanismo e da oferta de solos com a adequada qualificação em equipamentos, espaço público e acessibilidades. Se a assimetria qualitativa do nosso território torna os locais “prime” em bens escassos, cujo valor será sempre incompatível com os desideratos da política pública, cabe a esta última dar um contributo positivo, qualificando o território, diversificando os locais com atratividade e destapando a panela de pressão em que convertemos as nossas cidades. Finalmente, a procura que, em resultado das alternativas de usos que emergiram nos últimos anos, abriu a porta à não orientação estrita da oferta para o mercado tradicional de habitação. A concorrência entre usos valoriza os ativos. Mas, sendo claramente positiva para a “economia urbana”, dificulta o objetivo do “acesso à habitação”. Neste caso, como se tem visto, a política pública tem tentado fazer algo, mas quase sempre pela negativa, cortando fontes de procura.

Assim, mesmo não optando pela inibição das fontes de procura e de valorização do mercado, seria simples assegurar habitação acessível se as políticas não só não onerassem o produto final com fardos administrativos, fiscais e de incerteza como, em simultâneo, o descomprimissem face à sua restrição territorial.

A incapacidade em o fazer eleva o PRR à figura de tábua de salvação, financiando diretamente a promoção de oferta pública de habitação. Ora, pergunto-me se, em vez desse financiamento direto, o PRR não poderia alavancar um volume muito superior de fogos a preços acessíveis, servindo muito mais famílias, se fosse dirigido para projetos de iniciativa privada que tivessem essa orientação, os quais se apoiariam nesse instrumento unicamente na medida em que fosse necessário para compensar a respetiva perda de rentabilidade. O programa JESSICA foi um bom exemplo dessa política, viabilizando projetos que tinham rentabilidade, mas cuja viabilidade dependia do acesso a condições de financiamento mais atrativas. E, fazendo-o em regime reembolsável, assegurando-se a capacidade futura de reinvestimento em novos projetos. Isso enquanto parte das verbas do PRR eram usadas para as reformas necessárias ao nível do licenciamento, da fiscalidade e da qualificação territorial, desbloqueando e desonerando a atividade de promoção imobiliária.

A política pública não tem de fazer. Tem somente de assegurar que há condições para que se faça… Sem pandemia e sem PRR, quais seriam as alternativas?

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